A herança da culpa e a coragem de descansar
Há uma sensação que atravessa muitas pessoas quando finalmente chega o momento de parar, uma espécie de inquietação que confunde pausa com fraqueza e repouso com abandono, como se o corpo só pudesse ceder depois de cumprir todas as tarefas e o tempo livre fosse um território que precisa ser conquistado e, de certo modo, justificado. Essa sensação não nasce do acaso, ela é herdeira de uma longa história que molda a maneira como entendemos o trabalho, o valor e o direito de simplesmente existir sem função imediata. Marilena Chaui lembra, ao apresentar o texto de Paul Lafargue, que a preguiça foi transformada em pecado capital, inscrita numa tradição que associou o ócio à culpa desde que Adão e Eva foram expulsos do paraíso e condenados ao labor como forma de penitência, criando uma narrativa em que o descanso se torna suspeito e o esforço contínuo passa a ser exaltado como virtude moral.
Essa moralização do trabalho serviu, ao longo dos séculos, para sustentar uma lógica que separa quem pode descansar e quem deve se submeter ao esforço sem fim, e isso aparece tanto nas justificativas coloniais que descreveram povos originários como indolentes quanto na forma como sociedades europeias viam, de maneira racista, determinados corpos como naturalmente predispostos ao trabalho pesado. Dessa forma, o elogio ao empenho e a condenação ao ócio funcionaram como instrumentos de poder, pois enquanto poetas, filósofos e governantes gregos e romanos desfrutavam do tempo livre para pensar, criar e existir, cabia aos escravos e aos pobres carregar o peso do trabalho considerado inferior, reafirmando uma divisão que atravessa a história e ainda estrutura nossa subjetividade.
Não é por coincidência que a palavra que usamos hoje para falar de trabalho carrega marcas tão explícitas de dor, já que tripalium, sua raiz latina, era um instrumento de tortura usado para empalar escravos rebeldes, e labor, também do latim, remetia ao esforço penoso, à fadiga e ao sofrimento. A associação entre produtividade e valor humano se torna naturalizada a ponto de parecer inevitável, assim como a crença de que só merece descanso quem produz o suficiente, quem não “falha”, quem não recua, quem não ocupa espaço demais, quem não cansa. Consequentemente, quando o corpo pede uma pausa, é como se essa pausa precisasse ser negociada com os fantasmas dessa tradição.
O que raramente nós dizemos é que o descanso não ameaça a vida, ele a sustenta. A pausa não é uma interrupção do caminho, mas a própria condição de continuidade, e talvez seja por isso que ela provoque tanto incômodo, pois ao descansar escolhemos não participar, ainda que por um instante, dessa engrenagem que historicamente nos convence de que o valor está sempre lá fora, nas entregas, nos resultados, na ocupação constante. Ao contrário disso, há algo profundamente político em resgatar a possibilidade de existir sem função imediata, pois nesse espaço o corpo se recompõe, o pensamento se reorganiza e o sujeito volta a perceber a própria vida para além do desempenho.
Descansar, então, não se reduz a não fazer nada, mas a recuperar uma dimensão de humanidade que o tempo acelerado tenta capturar, e é justamente por isso que a culpa aparece, já que ela não é só pessoal, mas cultural, moldada por séculos de discursos que reduziram o ócio a pecado e o trabalho a redenção. Quando escolhemos parar, não estamos apenas cedendo ao cansaço, estamos nos opondo a uma lógica que nos quer sempre disponíveis, sempre produtivas, sempre responsáveis pela manutenção de tudo e de todos.
Talvez o desafio não esteja em planejar a pausa perfeita, mas em admitir que o descanso pode ser simples, cotidiano e suficiente, mesmo quando não vem acompanhado de justificativas ou recompensas. Ele é parte do cuidado, parte do corpo e parte do pensamento. Na Síncrona, olhamos para esse movimento com a convicção de que autocuidado não é concessão individual e muito menos luxo, mas um gesto de ruptura com a ideia de que só existimos quando estamos fazendo, produzindo e entregando. Descansar é, enfim, reivindicar o direito de pertencer à própria vida.

